sexta-feira, 1 de abril de 2011

As coisas são para quem as enxerga.

Entrou rápido e intrépido pela porta mecânica. Corajoso, foi o primeiro a atravessar a estrutura de metal onde um guardião carrancudo cobrava pedágio. Sua dezena de olhos conferia as condições do lugar, e procurava um paradouro seguro para ele e sua protegida.

Parou um instante, sentiu o ar e avançou decidido até o fim do corredor. Observou atento as possibilidades da localização, mas ficou em pé. Acenou. Ela respondeu mexendo na bolsa:

- Senta lá no fundo, Homem-Aranha, que a mãe tá pagando a passagem.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Cala a boca!!!

Ouvi o choro abafado quando entrei no ônibus. Um bebê, que provavelmente protestava contra os sacolejos e o barulho alto do motor. Procurei com os olhos o dono do chorinho.

O encontrei reclamando no colo da mãe, que no meio de uma conversa animada com a amiga simplesmente lhe jogou um "cala a boca!".

Será que ele entendeu?

A mãe achou que não. Apertou o queixo do pequeno com o dedão, e sem muito esforço o calou. Ele relutou no início, mas por fim pareceu se conformar. Ficou mudo, com a testa franzida, recluso dentro do mundo do seu xale azul.

A simplicidade as vezes nos escapa...


É bom lembrar que ela existe.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Sorte de quem?

Entrou rápido no trem, trazendo junto os dois filhos. Uma menina de uns 10 anos, muito parecida com ela, e um garotinho menor, de uns 7.

Se aboletou ao meu lado com os dois pequenos no colo e olhou ao redor, procurando algo. Seus olhos encontraram os meus, que involuntariamente devem ter consentido o contato.

- Tu sabe onde eu pego o ônibus para Novo Hamburgo?

- Não, desculpe. Não venho muito para esses lados.

Como eu não continuei a conversa, ela respondeu o que eu não perguntei.

- Eu não sei ler nem escrever. Meu sogro me explicou o caminho. Não consigo ler as placas dos ônibus.

Fiquei com pena. Não sei se de mim ou dela. Continuei calada, mas curiosa. Ela, sentindo que havia encontrado olhos e ouvidos dispostos, seguiu:

- Vim trazer as papeladas do meu marido. Ele tá preso e vim trazer os papéis pra ele ser solto. Ele tava no semi-aberto, mas fugiu. Ficou dois anos fora, mas daí ele mesmo se entregou. Tá lá há 4 meses agora...só eu visito. Depois que eu entregar isso ele sai em 30 dias, me disseram.

- Que bom, eu disse, com vontade de perguntar muito mais.

- A passagem tá muito cara. Eu ganhei essas aqui, falou abrindo a bolsa e mostrando os vales do ônibus no qual fariam baldeação ao descer do trem.

- Vocês moram onde?

- Eldorado do Sul?

- É longe.

- É. Hoje o cobrador até reclamou. A menina já paga passagem, então eu digo pra ela passar por baixo da roleta. Esse é o jeito, eu não posso roubar, não posso ir presa...

Um outro passageiro, que transitava entre o sono e a atenção na nossa conversa, de repente pergunta:

- Teu marido tá no Central?

- É, ela disse meio a contragosto.

- E ele não trabalha?

- Ofereceram pra ele cuidar dos portões das celas, mas ele não quis. Não dá pra fechar os parceiros dele.

- Ah, mas se ele tinha fugido, até que a função é boa.

- É, mas bem capaz fechar os parceiros deles...

- Tu sabe que na cadeia não tem parceria, né?

- É...mas bem capaz...

Disse isso olhando para fora, fitando o mato alto que passava rápido pela janela do trem. O homem levantou e saiu cambaleando, tão logo o trem parou na próxima estação.

Ficamos em silêncio. Ela avista na outra ponta do vagão um banco maior, onde cabem ela e os filhos. Aponta para as crianças, que vão na frente apostando corrida. Antes de levantar, me olha no olhos.

- Boa sorte.

Ela não sabia de onde eu vinha e nem pra onde eu ia, e fiquei com a sensação de que a minha sorte devia ser dela.

domingo, 30 de janeiro de 2011

O início.

Já faz algum tempo que tento ter um blog. E desde sempre, a desculpa para abandonar o projeto é a falta de tempo para atualizar a página. Na verdade faltava motivação, já que um diário na rede sobre as banalidades do meu dia é algo que realmente não me interessa. Nem pra mim e nem pra ninguém.

Pensei bastante, e eis que as minhas novas pesquisas e parcerias profissionais me deram uma luz. Esbarramos todos os dias em poesias concretas e realidades duras desenhadas na carne. Nem sempre há como transpor o momento para os suportes narrativos , mas é possível engolir, digerir e devolver uma reflexão.

Começo hoje, ainda sem saber por quanto tempo, um diário de dramaturgias em miniatura. Pequenas verdades, pontos de vista e reconstruções das coisas do existir.

Não tenho compromisso com nada, só com o fluxo. E sabe lá pra onde ele vai...